terça-feira, setembro 16, 2008

Nepal e a "Menina Aguarela"

Terminar uma experiência e escrever sobre ela, quando já finalizada, tem sido a forma que melhor se tem ajustado à elaboração destes textos, mas curiosamente não é o presente caso, nem é muito claro o porquê.
Quando penso no Nepal parece que as nuvens das monções se mudaram para dentro da minha cabeça! Contudo, o contrário também é válido; manhãs, ou até certos pôr-do-sol, são tão límpidos que ainda fico meio extático só de neles pensar.
É este contraste paradoxal que parece ter sido a base deste contacto mais profundo com um Nepal de características únicas. Vários exemplos destes paradoxos se vêem um pouco por todo o lado: por exemplo, o dono do Hotel chega a casa e senta-se no chão de terra da sua casa... ou o complexo sistema de castas, bem vivo, para lá dos olhares mais distraídos, ou a turística cidade de Kathmandu que se apresenta relativamente limpa sem que existam caixotes do lixo... Os muitos galos que se ouvem no centro de Kathmandu, como se estivéssemos no campo... Depois existem as zonas mais isoladas do Nepal... Lia no folheto publicitário de "Upper Mustang": "Casamento da mulher com dois ou mais irmãos, para evitar separação das terras de família, está ainda em prática. O marido pode ter segunda mulher se a primeira for infértil. Mas como todas as formas tradicionais, estas também estão a mudar, sob a influência das culturas e valores externos". Os preços para entrar nesta "área restrita" são pouco apelativos (mais de 500 U.S. por 10 dias) mas certamente que é incrível.
Muitos outros exemplos poderiam ser dados. É como se o Nepal vivesse com um pé no passado e esticasse o outro para 'apanhar' a modernidade muito focada no mercado Ocidental, pois têm sido os Ocidentais a grande fonte de receitas, através de tudo o que se liga aos famosos "trekkings", actividades ligadas às montanhas, parques e turismo em geral.
'E possivel participar em programas de voluntariado, o que 'e algo frequante tambem no Nepal com jovens dos mais veriados paises a participar. Era o caso tambem de Kim, Sul Coreano, que se inscrevera no "International Work Camp", num projecto ligado 'as melhorias das condicoes de uma escola.

Nagarkot - A janela "entreaberta" para os Himalaias
A localização de Nagarkot, a cerca de 2000 m de altitude, com os seus muitos hotéis, que parecem disputar o melhor panorama das montanhas é simplesmente fenomenal!
Estávamos no período de monções, o que dificulta a visibilidade com a intensa nebulosidade que normalmente circunda os Himalaias, afastando também os turistas.
No meu caso, mesmo fora de época, fora-me permitido contemplar, por várias vezes, os Grandes Himalaias, que talvez por essa mesma dificuldade trouxe o sabor de bênções ainda mais apreciadas.

Baktapur e o Holandês
De Nagarkot para Baktapur fui no autocarro mais lotado que alguma vez viajei; a minha sorte foi ter a mochila comigo, pois caso contrário, algum se teria sentado ao meu colo!
Em Baktapur, cidade turística que nos transporta aos tempos medievais, fiquei num pequeno hotel. No dia seguinte sentei-me no piso superior que tem uma sala convívio, enquanto aguardava o pequeno-almoço. Naquele piso mora um Holandês, que ali vive com carácter permanente. Tomamos o pequeno-almoço juntos e contou-me um pouco das suas aventuras. Rich, com cerca de 50 anos, fora, segundo ele, o primeiro Ocidental a montar um negócio naquela cidade. Contou-me algumas das peripécias da sua adaptação, e saiu-se com esta história para descrever as suas dificuldades... Mas é um pouco mais que isso...
"Cinco macacos numa jaula. Uma banana pendurada no topo da jaula. Em volta existem jactos de água que se accionam de cada vez que os macacos se movem em direcção à banana. Isto acontece vários dias até que os macacos acabam por desistir. Todos eles têm um bracelete azul no braço. Entretanto, um deles é retirado da jaula e um novo macaco, agora com bracelete vermelha, é colocado no interior da jaula.
A primeira coisa que faz é mover-se em direcção à apetitosa banana. Tal intento é vigorosamente demovido pelos outros quatro macacos. A resistência é tal que este macaco acaba por desistir.
Passados uns dias, voltam a tirar outro macaco de bracelete azul que é substituído por um novo de bracelete vermelho. A reacção foi igual; todos impediram que este alcance a banana.
O processo continua ate que um dia todos os macacos têm bracelete vermelha, e a banana continua no mesmo local" :)

Regresso a Kathmandu
Em Kathmandu, notícias contraditórias iam surgindo acerca da reabertura da fronteira. Após as manifestações "Tibete Livre" os chineses fecharam a fronteira com o Tibete. Ainda se pensou que após s jogos olímpicos a situação se regularizasse.
Decidi fazer o "Annapurna trekking" com objectivo específico de alcançar a Cave de Milarepa, um famoso Yogui do séc. XI e XII, considerado um expoente dentro da tradição Tibetana. O site abaixo dá uma ideia da história:
http://budismotibetano.no.sapo.pt/biografias/milarepa.htm
Era minha ideia fazer este "trekking" como uma espécie de compasso de espera para ir ao Monte Kailash, no Tibete.
Há muito que ouvira falar nestes "trekkings" do Nepal, mas a experiência que se me depara supera tudo o que pudesse imaginar. Com cenários dignos de filmes tipo Senhor dos Anéis, toda a convivência se faz numa subida de vários dias junto ao rio Marsyangdi e as montanhas. O rio tem uma presença fortíssima, por vezes, quase ensurdecedora e as montanhas parecem que são cada vez maiores. A actividade humana está condicionada ao vale; transportes motorizados não existem, o que nos dias de hoje é coisa rara, sendo o transporte de mercadorias feito por animais e especialmente por pessoas, que caminhando em grupos, carregam pesos impressionantes, durante dias e por caminhos que por vezes parecem desaparecer entre água, lama e deslizamentos de terra.
O governo tem mobilizado esforços no sentido da construção de uma estrada naquele vale, mas parece ter a séria oposição da própria natureza que ao ser perturbada no seu delicado equilíbrio, se reajusta por vezes violentamente contrariando as intenções humanas. Como não posso transcrever toda esta experiencia incrível, deixaria parte de uma carta que enviei a uma amiga acerca da experiência e das dificuldades em alcançar a Cave Milarepa e algumas reflexões que daí surgiram.
"Annapurna" significa: A Nutridora.

A Carta:
"A experiência é absolutamente incrível! Esta palavra "incrível" pode ser usada em vários sentidos. Talvez um dos mais famosos trekkings do mundo, de dificuldade considerável, remete o caminhante a uma entrega total e aos aspectos que envolvem a caminhada.
Hotéis simples não faltam, mas no geral as facilidades são escassas, o que obriga o caminhante a transportar consigo o essencial para as surpresas, o que lhe aumenta o peso que carrega. Eu viajei sozinho o que não é propriamente o mais comum, mas que é algo que me agrada cada vez mais. De uma forma geral caminho mais lento que o normal das pessoas mas em contrapartida faço mais tempo, o que nos leva aos mesmos destinos...
Cheguei a considerar fazer a passagem do Thorong passe, porem, tal ideia nunca fizera parte dos planos iniciais. Do outro lado do passe algo escuro parecia afligir-me...
Seja como for, ao passar a barreira dos 3500 metros de altitude fiquei com os sintomas da doença das montanhas, que se agravou pela persistência de uma diarreia que só se curou já no final do regresso.
Fiquei 5 dias em Manang (Braka) onde procurei reequilibrar e gerir esforços. Durante este tempo e um pouco em uso das reservas físicas subi à Milarepa Gompa (a +/- 4200 m) que era o objectivo principal de todo este empreendimento.
Na busca pela suposta cave, que deveria ficar não muito longe da Gompa (templo), e a estender os esforços, uma situação totalmente inesperada demove-me de continuar: Primeiro ouço uma pequena pedra que é seguida por um calhau que se desloca a elevada velocidade vindo das montanhas mais altas. Fiquei assustado, quer pela situação em si, pois o calhau passou a poucos metros de mim, quer pelo receio de que atrás daqueles viessem outros. Locais de protecção e mobilidade eram praticamente nulos, pois afinal estava num pequeno carreiro de uma encosta bem íngreme.
Não hesitei em regressar e procurei uma concavidade um pouco mais abaixo e reflecti um pouco apreciando a beleza da paisagem.
Neste local onde me sentei também dizem que fora utilizado por Milarepa para as suas meditações...
Mas perguntava-me o que tinha acontecido e onde estava a cave.
Ainda hoje não percebi se existe ou não. Depois de comentar o episódio no hotel é que me disseram que a Cave Milarepa fora fechada pelos populares após um desmoronamento de terras. Esta espécie de “meias verdades” é recorrente mesmo nos serviços oficiais, requerendo uma abertura extra para todos estes imprevistos.
Claro que o calhau voador me fez reflectir em várias coisas quase compulsivamente: O que foi aquilo? Um aviso?
Fosse o que fosse foi a decisão mais acertada não estender mais o esforço e como já descrevi parece que não ia ver nada.
Consequência de tudo isto e de um almoço que não consegui digerir venho a provocar o vómito pois sentia-me profundamente indisposto. Houve uma sensação de libertação e parece que ajudou na recuperação...
(Questões relacionadas com a mente)
Um exercício no sentido oposto tem sido feito para trazer a mente mesmo às situações mais desconfortáveis. O próprio trekking foi um óptimo exercício nesse sentido, onde tomei consciência, um pouco mais profundamente, do poder que a mente tem! O esforço do caminho leva a mente a não querer estar ali e a insistir em divagações como forma de alienação. Trazê-la de volta para que ela volte a fugir é um exercício de profunda paciência...
Depois existe a Beleza, a Grandeza, a Presença daquelas paisagens, daquele Vale, escarpas, caminhos... as muitas pessoas sofridas... e as Grandes Montanhas que transportam à Contemplação e à rendição, pois na realidade pouco mais podemos fazer na presença de tal Poder e tal Beleza.
(Reflexões pós experiencia do calhau voador. O desafio que falo a seguir é a "morte" num estado de felicidade).
Parece-me um desafio quase impossível, mas tal será o reflexo de quem tem o domínio da mente e acima de tudo compreendeu que na realidade não há morte. GRANDE DESAFIO! Não sabemos quando somos "levados". Podia ter sido aquele calhau... ou outra coisa qualquer... em qualquer momento... mas também parece haver uma Ordem que gere estes acontecimentos. Quantas vezes, em situações de elevado risco, a vida parece invencível para vir a desfalecer em situações tão insignificantes? Parece-me que temos de proteger a vida e aceitar as leis da natureza e as Leis Cósmicas.
Outra reflexão, algo relacionada com isto, prende-se com algo bem subtil mas de consequências bem consideráveis. Será possível o Ser expressar-se minimamente sem que o individuo tenha e cultive, aquilo que a não ter melhor definição chamarei de "Dignidade do Ser (de Ser)"? Será possível o Ser brilhar se mecanismos acumulados de opressão, de medo... (em relação ao outro...) se mantêm activos num processo interno de chantagem?
Não é esta uma questão importante (issima)? Como poderá o Homem dar o que tem de melhor se não O reconhece em si mesmo?
As reflexões do Rui... :)"

Durante as muitas horas da caminhada várias foram as vezes que deixava divagar a mente nas infinitas possibilidades que parecem haver para criação e valorização de parques temáticos (áreas restritas), que pudessem envolver populações e fossem apelativas a um turismo sustentado...
Terminar o trekking regressando à "civilização" apanhando o jeep que vai ate Besisahar, onde partes significativas são feitas em primeira lenta com a tracção das quatro rodas ligada, num veículo apinhado de gente, ou os sacos de plástico que são distribuídos na carrinha entre Besisahar e kathamdu, revela-nos que a aventura continua.

Kathmandu, de novo.
Kathmandu servia agora como base para recuperar e descansar, ainda na esperança de me deslocar ao Tibete, o que ficará para uma próxima oportunidade.
Praticamente todo o período de permanência no Nepal estive envolvido num projecto que muito me tem cativado. Surgido de um olhar que há muito parecia procurar, deixei-me encantar por "Aguarela" (será formalmente apresentada brevemente). Comigo tem colaborado o Nuno e a Romana, que de forma entusiástica também abraçaram o projecto, que vem progressivamente ganhando forma.
É com muito entusiasmo que espero poder apresentá-lo neste blogue, brevemente.

"Que o Puro Amor se Expanda"

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