quinta-feira, julho 20, 2006

NEPAL 3 - A experiência de Nuno


Nuno Pereira, saíra há cerca de um ano de Geneve, na Suíça, percorrendo cerca de 20 países até chegar à India. Passando por variados locais de interesse como a Polónia, Ucrânia, Roménia, Turquia, Irão, Afeganistão, Paquistão e finalmente a Índia, entre outros. É o contacto com a Índia que trás alterações significativas na sua viagem. Abaixo ficam as suas primeiras impressões aquando da chegada a esta terra, retirado do mail que enviou aos amigos, numa transcrição integral:
Foto tirada junto à Pagoda da Paz, em Lumbini.
Um abraço pela PAZ.

"Amigos,

Após um mês de viagem pela Índia, vou tentar pôr durante instantes a preguiça de lado, para vos transmitir as minhas primeiras impressões sobre este extenso e misterioso pais. Mas como pôr a Índia 'por escrito', sem cair na caricatura ou nos lugares-comuns?

Assente na propaganda do primeiro cartaz que vi ao passar a fronteira ('India the largest democracy in the world welcomes you'), eu tinha previsto falar-vos de política, desta 'democracia' à indiana, onde todos opinam sobre (quase) tudo - aliás aqui é costume dizer que 'cada parede é um mijadouro', o que é verdade no sentido próprio e figurado... Depois, eu teria passado a falar da inamovível religião - a dos digníssimos Sikhs de Amritsar ou a dos milhões de templos hindus, com as suas estatuetas kitsch de deuses sorridentes, que ninguém deveria levar a sério. Teria acrescentado um ou dois comentários triviais sobre a pluralidade da sociedade indiana, com as suas centenas de línguas e de comunidades.

Não teria obviamente deixado de destacar as escandalosas injustiças sociais, que acarretam os seus ultrajes diários, patentes a cada esquina, que indicam uma divisão social cruel, da qual sofrem sobretudo todos os anónimos que a burocracia bem-pensante estampilha BPL ('below poverty line'), que passam a vida a sobreviver, no campo ou sobre o chão das cidades.

Depois dessa introdução, teria continuado narrando-vos alguns encontros marcantes, como o de Mady, jovem cujos pais recompensaram com um 'bamboo massage', quando souberam que ele frequentava uma rapariga oriunda de uma casta inferior. Ou o de Nyima, o sempre optimista professor tibetano de Dehra Dun, que carrega com um sorriso a memória do exílio. Não teria esquecido de vos apresentar o canhoto Dalir, que me confessou odiar deus, desde que este lhe retirou as faculdades da mão esquerda (consola-se dizendo que, pelo menos, os seus órgãos sexuais não foram atingidos...). Ter-vos-ia também contado os meus primeiros contactos com os enigmáticos sadus e com os menos enigmáticos garotos que jogam criquete sobre os ghats de Varanasi. Esta cidade até teria proporcionado o quadro mais pitoresco, com as suas ruas labirínticas que cheiram a incenso e a merda de vaca, com os seus inúmeros peregrinos, que se lavam, fazem a 'puja' (cerimonia de oferenda e reza), o seu yoga, ou as suas necessidades a beira do 'Ganga'; com aquele velho boatman, que me contou que o whiskey local purifica quase tanto quanto a agua benta do Ganges, que o velhote até bebe sem medida, apesar da concentração bacteriológica assustadora.

Para fazer crescer agua na boca e vos incitar a visitar este pais, teria feito quaisquer observações sobre as maravilhas da comida indiana. Todavia, ter-vos-ia de imediato aconselhado a não pôr os pés aqui, para evitar o assedio descarado de que os turistas são frequentemente vitimas.

Teria terminado com uns relatos animalescos, para vos comover. Da narração das minhas brincadeiras com os macacos, teria prosseguido com a história de uma cadela de Allahabad, que faz de policia a volta do cadáver de um (o seu?) cachorro. Misturando ternura e nojo, ter-vos-ia logo a seguir descrito como os cães devoram durante três dias um cadáver de vaca pranha, que comeu provavelmente demasiados jornais antigos. Dando a derradeira estocada, ter-vos-ia por fim descrito o cheiro de carne (humana, desta feita), que arde no Harishchandra Ghat de Varanasi.

Mas chegou o tempo da ruptura. A Índia acabou com a rotina de viagem na qual eu me comprazia. Este país desgastaste põe constantemente à prova o viajante. Os meus hábitos transformaram-se de forma significativa: passo semanas sem comer carne (inexistente nalguns locais), curo-me com porridge de banana e cha massala. Escovo os dentes com pasta ayurvedica (sem flúor, mas com bastante espuma) e apercebo-me através de algumas sessões de yoga a que ponto o meu corpo esta enferrujado após 7 meses de viagem e 28 anos de descuido...

Também devo reavaliar as minhas interacções com as pessoas, que se fazem por vezes em modos desnorteantes, e até contrários aos meus princípios. Novos (ou velhos) sentimentos aparecem: raiva, ira, impaciência. É necessário compreendê-los e geri-los.

Sigo o Ganges, rio abaixo, rio acima, sem saber ao certo aonde vou. As etapas esboçam-se no dia-a-dia. Experimento a lentidão, a arte de fazer pausas na viagem, sem estar sempre a olhar para o relógio ou para o calendário. Passo por conseguinte ao lado de muitos eventos (festivais...) e só chego a Allahabad depois do fim do Magh Mela, para observar os mergulhos de jovens pescadores na corrente rápida do Ganges, à procura de moedas que os milhares de peregrinos atiraram para o rio. Já não me apetece andar em correrias par ver tal monumento, tal lugar, para assistir a tal manifestação.

Confesso que nunca me senti tão sozinho nesta viagem. O que não deixa de ser um paradoxo num país que conta mais de um bilhão de habitantes (400 milhões só na bacia do Ganges!), com ruas abarrotadas de gente, rickshaws (a pedais ou com motor) e vacas. Sofro de solidão, mas também opto pela solidão. Chegou o tempo da reflexão e da introspecção, da incerteza, de por em causa vários condicionamentos. Enquanto a realidade social de um pais radicalmente diferente daqueles que atravessei até agora se vai progressivamente dando a conhecer, dou comigo a procurar instrumentos de compreensão no 'mim mesmo'. Absurdo?...

Munido de 1000 dúvidas e da minha ignorância do sub-continente, sou um aprendiz-viajante, que tem à sua frente uma oportunidade rara de perceber o que significam, na prática, a humildade e a compaixão. A humildade, talvez possa enraizar-se no meu próprio nome, que significa 'pila' (pénis de jovem rapaz) em hindi... Compreende-se facilmente que tal cognome é logo à partida um punhal plantado na minha frágil credibilidade... A compaixão, essa, afigura-se-me como uma noção muito mais insondável.

Um abraço cheio de saudades,
Nuno"

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado por partilharem esta carta, é óptimo para quem está "confortável" nesta parte do globo ficar com uma ideia da vossa experiência...
Abraço e boa viagem!